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Adriano F. Monte Alegre

Nascido em Salvador da Bahia. Graduado em Ciências biológicas. Especialista em Entomologia Médica pela USP (Universidade de São Paulo). Mestrado em Biologia Evolutiva e Doutorado em Parasitologia, realizados nas Universidades de Provence e Montpellier - França. Professor da Universidade Federal da Bahia - ICS (Instituto de Ciencias da Saúde).

AO AMIGO LEITOR




Disponibilizo na integra, dois contos premiados e elogiados em concursos literários.

Os contos ‘Aquele que escreve’ e ‘ Da minha Janela’ guardam uma amplitude e profundidade que ultrapassam as dimensões do próprio texto. Dizem também que a cada nova leitura, novos significados germinam de suas entranhas.


Leia, comente, compartilhe os textos se você quiser. Mas cite sempre o autor. Para quem escreve, o leitor é o termômetro e companheiro de emoções. Por isso não hesite em tecer seus comentários. Um grande abraço, e boa leitura.

Contatos
com o autor:

am-alegre@bol.com.br
http://www.adrianomontealegre.blogspot.com/

CONTOS PREMIADOS


AQUELE QUE ESCREVE

Conto classificado em 1º lugar no XXIII Concurso Internacional Literário, edições AG (2008). Os contos que participaram do referido concurso eram provenientes de diversos países do mundo, entre eles:EUA, Irlanda, Angola, Portugal, Alemanha, Itália...Sem falar nos vários estados do Brasil.

DA MINHA JANELA

Conto classificado juntamente com outros nove contos, sem ordem de classificação, para integrar a antologia resultante do ‘Concurso Literário Professor Horácio Pacheco (2008)’, realização da Academia Niteroiense de Letras (ANL) em parceria com a Imprensa Oficial do Rio de Janeiro. Neste concurso, concorreram 168 contos vindos de todas as partes do país.

PRECISÃO e DENSIDADE


O conto é a forma narrativa, em prosa curta. Um gênero caracterizado pela precisão e densidade. Segundo o grande contista Tchekhov: o conto precisa causar um efeito singular no leitor; muita excitação e emotividade. Grandes escritores como Maupassant e Machado de Assis consideram ‘o conto’ como gênero literário de difícil construção, a despeito de sua aparente facilidade. Enquanto no romance, o escritor pode deixar suas escórias e superfluidades, em um conto quase todas as palavras devem estar em seus lugares exatos.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

AQUELE QUE ESCREVE

Adriano Monte Alegre



Eu estalava, sobre folhas brancas, letras que formavam palavras, palavras que viravam frases e tomavam vida. 

Já fazia mais de quinze dias que escrevia... Escrevi tanto, que as articulações dos dedos quase travaram. Mas só parei de escrever mesmo na hora em que eu a vi saindo do riacho com seu vestido colado ao corpo e seus lábios molhados.  Parei ali quando ela saiu com aquela alma que abraça o mundo; na hora em que seus cabelos ruivos foram tocados pelos raios de Sol.

O brilho de seus olhos era tão intenso e seus dentes da cor de neve; apaziguavam tanto o que sou, que eu mesmo, o autor, terminei achando que o amor tinha uma cara: a dela.

A história tinha chegado ao fim e nada mais deveria ser acrescentado. Foi neste instante que tirei os dedos de cima da máquina, e interrompendo os estalos metálicos, parei de escrever.

Aquela mulher meio encantada havia sido a luz que faltava na história. Era o amor que todos os leitores iriam contemplar no desfecho.

Depois de tudo finalizado, reabri a porta dos fundos da casa e revi com prazer as rosas e os jasmins em um quintal quase esquecido. Sentei-me em um canto no exterior e deixei o resto de sol do fim da tarde me esquentar. Bem ao meu lado, o pé de jasmim balançava e me impregnava de um cheiro agradável. Voltei a pensar no texto. No labor necessário para desenrolar as tramas de um romance, assim como na satisfação de construí-lo. Pensei nas frases que transformaram vidas e nos textos que refizeram o mundo. As palavras têm esse poder. Quando bem concatenadas, elas podem fazer uma folha cair da árvore, molhar a camisa de um operário; fazer uma borboleta voar, um pássaro cantar. Transformar o destino de alguém, dar o sorriso ao mendigo e lágrimas ao rico, deixar o burro apaixonado por um pato.

Fazer pairar uma ave de rapina enquanto um cão dorme próximo a alguém. Colocar um gato para andar por cem metros, nem um centímetro a mais. Elas podem dar uma nova tonalidade à luz do dia. Criar suspenses, e muitas outras coisas mais.

As palavras, quando chegam até as folhas pálidas, elas ganham uma alma: o texto. E quando nossas almas são capazes de tocar delicadamente essas almas presas ao papel, nós nos tornamos pessoas melhores.

Quando deixei o quintal com seus jasmins, a tarde caía rapidamente e a noite lentamente mostrava sua face com milhares de lantejoulas.

Carregando meu cansaço, segui até o quarto. Estiquei-me sobre a cama e fique ali, escutando o vento falar nas frestas espalhadas pelas portas e janelas. Foi com esta música que dormi, para sonhar com viagens, amigos, personagens, cobras e lagartos. Parece que no sonho aparecia também uma máquina de escrever sobre a qual meus dedos sambavam. Talvez, justamente, por causa desta cena, eu tenha despertado com um som metálico zunindo nos ouvidos.

Pela manhã, depois que tomei o café, senti uma vontade incontrolável de viajar para longe, bem longe de casa. O mais longe que pudesse ir com uma mochila nas costas. E foi assim, com uma forte coragem, que ajustei a mochila nas costas e fechei a porta de casa atrás de mim.

Quase questionei minha atitude. Mas eu sabia que depois dos dias enclausurado, bem que merecia fazer uma viagem sem roteiro programado. E foi apenas por causa deste sentimento que pude avançar firmemente sem olhar para trás, nem sequer uma única vez.

Passados quatro dias, já tinha atravessado, a pé, selvas, serras e montanhas; engolido dias e noites; contemplado estrelas e rios.

Agora estava no meio do quase nada, em uma terra onde o solo ardia como fogo, e o chão rachava aqui e acolá. Estava no Sertão, bem no seu coração, no meio da secura, dos mandacarus e juazeiros, em um local de onde vemos ‘brotar’, da terra vermelha, ossadas de vacas e bodes. Algumas vezes vi as caveiras desses animais no alto das cercas de paus tortos.

Nas veredas, as árvores retorcidas em aflição pareciam gritar. Eu tinha a impressão de escutar estalos vindos do nada, e até de enxergar ondas de calor deixando o solo e subindo em espírito ao céu. Talvez já estivesse alucinando.

Nos caminhos monótonos da caatinga, eu seguia arrastando minhas alpercatas. Meu deslocamento levantava o pó rubro que se colava como praga na bainha de minha calça e em meus pulmões. A maldita tosse voltava. A saliva já tinha abandonado a boca. O Sol castigava. Meus lábios partidos já se distanciavam dos dentes, e eu seguia arrastando as alpercatas...

A aflição só diminuiu quando avistei o casebre de barro. A imagem fez meus olhos marearem. Deus existia.  Acho que o som das alpercatas puxando a terra seca era o que me mantinha de pé.

Aproximei-me do casebre, e só pude bater duas palmas, por causa da força que o desespero me dava.

Foi uma velha que saiu de dentro do casebre. Um cão preto, de costelas salientes, a acompanhava, esbarrando nos tecidos de sua saia. Desde que a velha tinha pisado no chão rachado, fora da casa, duas galinhas correram para bicarem sobre a terra seca junto aos seus pés. A velha, com a pele cortada por rugas, me olhou firme. Seu silêncio era o sinal de que precisei para, sem delonga, pedir um pouco de água.

Ele me fez um sinal com a mão e eu a segui por fora até os fundos da casa. Foi lá que ela me mostrou a direção do meu alívio. Na boca do poço, uma estrutura de madeira trazia uma corda fixada a uma lata.

Tentei sorri, mas minha boca mal se abria. Então lancei a lata, que logo tocou no fundo do poço. Escutei a água entrando na lata... Que maravilha! Logo puxei a corda, que rangeu na roldana.  E quando a lata cheia chegou ao alto, abracei-a com força e molhei meus lábios e a garganta.

Nesta hora, escutei um grito vindo de dentro do casebre de barro. O que podia ser aquilo? Perguntei-me. O grito parecia de mulher. Achei estranho o fato de a senhora nem correr para ver o que se passava. Olhei para a velha querendo questioná-la sobre o grito, mas seus olhos cinza pareciam já saber o que acontecia.

Foi só depois de alguns minutos; que nós saímos dos fundos da casa e retornamos por fora até a entrada principal.

Na frente da casa, agradeci pela água. Mas antes mesmo de seguir meu caminho, vi outra senhora mostrando a cara na porta do casebre de barro. Ela tinha vindo do seu interior. Tinha estatura baixa, de cor negra e um corpo quase robusto. Fiquei sabendo que era uma parteira. Ela usava um turbante branco, um lenço no pescoço e abraçava um emaranhado de pano. A velha do meu lado me contou que sua filha acabara de dar à luz. Na verdade, o emaranhado de pano nos braços da parteira cobria um recém-nascido. Eu e a velha nos entreolhamos novamente, mas quando já ia felicitá-la... Exatamente neste momento, a parteira anunciou a terrível notícia: a mãe da criança havia morrido no final do parto.  Isso também queria dizer: a filha da velha havia falecido.

Acho que nesta hora, escutei o crocitar de um corvo.  A caatinga ficou mais quente, mas senti mesmo assim um frio correr na minha espinha. Então a velha colocou as mãos na boca e chorou algumas lágrimas, antes de me pedir um favor. E é claro que concordei com o pedido. Fiz-lhe apenas uma pergunta. E a resposta que obtive foi apenas a de um dedo apontando para o cajueiro. Era no tronco da árvore que se encontravam, escoradas, a enxada e a pá. Levei uma tarde quase que inteira para abrir uma boa vala; o ferro da enxada entrava com dificuldade no chão duro. Quando terminei fui até o casebre e retornei com a defunta nos braços. Coloquei-a respeitosamente dentro da cova vermelha e, pouco a pouco, fui lançando a terra por cima. Éramos cinco em torno da cova: a velha que chorava baixo à minha frente, o cão preto de costelas salientes, a parteira que estava do meu lado, o recém-nascido enrolado nos seus braços, e eu cobrindo com terra o corpo da morta.  Súbito, um vento quente balançou as folhas do cajueiro e uma última pá de terra foi lançada sobre a cova.

Depois desse acontecimento, a noite foi triste. Havia sido uma história inesquecível, e dessa vez não havia sido eu quem a escrevera.

DA MINHA JANELA

       Adriano Monte Alegre



É daqui deste meu retângulo aberto na parede de concreto do quarto que passo horas mastigando e ruminando calmamente as lembranças do passado. Quando não é isso, fico debruçado na janela somente para observar os eventos dispersos no jardim do asilo e refletir sobre eles. O fato é que, deste lugar, posso enxergar uma infinidade de coisas contidas em um espaço finito. Daqui eu sou capaz, por exemplo, de contemplar o pé de hibisco-colibri, no qual inúmeras e vistosas flores vermelhas são visitadas diariamente por um beija-flor solitário – a minúscula ave brilha com suas cores metálicas enquanto paira no ar, como um helicóptero, para penetrar seu bico longo no cálice açucarado das flores. Uma cena tão delicada que, se pudéssemos apalpá-la, reconheceríamos a textura da seda. Um espetáculo cuja grandeza quase não cabe nas palavras.

O pé de hibisco-colibri, também conhecido pelo nome de Malvavisco, está plantado a menos de três metros de distância da minha janela, o que me permite perceber muitos detalhes da troca de benefícios entre a ave e as flores. Apesar disso, ainda ontem, no percurso das idas e vindas do beija-flor a uma velocidade alucinante, tive impressão de que havia ocorrido algo na cena imperceptível aos meus olhos. Essa sensação que me envolveu parecia me alertar para a existência de algo grandioso por detrás da vida. Às vezes, esse sentimento ainda fica oscilando calmamente entre meu coração e a minha cabeça. O vai-e-vem até se parece com o balanço gerado na flor do hibisco sempre que o beija-flor a abandona.

Da minha janela, acompanho igualmente muitas outras coisas. Posso ver os nossos idosos, amparados por enfermeiras ou pelas próprias muletas enquanto caminham cuidadosamente pelo gramado. Idosos estes que, antes de riscarem uma sombra sobre mim, nunca se esquecem de interromper seus passos por alguns segundos para me destinarem uma frase gentil e um sorriso cor-de-rosa. Nestas ocasiões, sinto que seus pequenos gestos me alimentam como se fossem pães.

Nenhum lugar pode ser mais confortável do que minha janela. Nela, mobilizo a serenidade. Açoito o mal. Vislumbro os horizontes. Aprofundo meus conhecimentos sobre os trejeitos da vida, incluindo suas manias e seus reflexos. E no final todas essas coisas são suficientes para me deixar feliz.

Há quatro anos, cheguei a me questionar sobre minha rotina. Queria saber se era inútil passar meu tempo debruçado à janela. Mas isso ficou no passado; agora, trago minha verdade. Uma verdade que me liberta das algemas que me pus um dia. Hoje, acredito que é a inércia da alma que constrói situações inúteis. Do contrário, quando a alma esta preenchida, as rotinas, sejam elas quais forem, têm uma importância secundária.

É preciso que a nossa verdade nos caiba como uma luva e que envolva as nossas mais íntimas diferenças. Facilmente podemos perceber que a felicidade faz par com a verdade e que ela desaparece com a mentira. A felicidade está na essência, e fora da essência o que existe são enfeites.

Para mim, a felicidade é como uma borboleta que gosta de sobrevoar campos de lírios em dias de tempo calmo, mas que se esconde como uma sombra na noite, aos primeiros sinais de ventania. Acho que a felicidade possa surgir em qualquer uma das quatro estações, no momento em que dois ponteiros de um relógio se encontram, no meio dos dias e das noites. A felicidade também pode despontar nos lugares mais inusitados: perto de uma lagoa riscada por dois gansos, nos asilos, no interior de um trem barulhento, à beira de uma estrada, junto ao mar e longe dele.

Aqui no asilo a felicidade costuma ser discreta. E como poucos a percebem, muitos são infelizes. A infelicidade é irmã do ‘vazio’. E apesar da contradição, nada pesa mais do que um ‘vazio’ embutido no peito. Parasitado por esse sentimento, nossos idosos percorrem labirintos terríveis do íntimo. Nestes momentos, o asilo se torna um antro de velhos surdos-mudos que se deslocam a passos lentos ou se balançam em poltronas nos corredores da grande casa. Um lugar onde os indivíduos se entreolham com paciência como se conhecessem a alma do outro, como se vissem no peito dos colegas o mesmo corte profundo que marca suas próprias vidas.

O ‘vazio’ é como uma erva daninha que, cobrindo um terreno fértil, impede o crescimento de boas plantas. E quando o ‘vazio’ se alastra no peito do homem, ele sufoca sua esperança.  E quando a esperança morre, a infelicidade domina.

Neste estágio da alma, os idosos vagam quase que sem consciência nos corredores do asilo. A boca nervosa mastigando o nada. As mãos trêmulas. As pernas fracas e os chinelos gastos. A flama de vida cintilando abafada.

Humanos que seguem os dias na companhia quase que exclusiva de suas próprias mazelas: neuroses, tremores do mal de Parkinson, dores diversas, bermudas cheirando a urina, flatulências incontidas. De resto, nada além de lembranças. No fundo sei que todos eles são maiores do que as circunstâncias que os envolvem. E isso já me tranqüiliza. Para mim, os homens são como os icebergs: o que existe de grande neles está submerso.

As copas das árvores frondosas do jardim balançavam delicadamente sob a brisa do entardecer, quando pensei em uma frase que havia lido certa feita em um desses livros abandonados que costumamos achar nos solos empoeirados de porões. Nele estava escrito: “Os corações precisam de luz, pois só desse jeito podem afastar os sentimentos vis que se nutrem da escuridão”.

Desviando meus olhos das árvores, notei que um fio de luz solar, do final da tarde, que há pouco descansava sobre meus braços, seguia viagem para iluminar o outro lado do planeta. Sua cor amarelada me fez lembrar de uma cena, bela como a flor de girassol, ocorrida no início da tarde no nosso jardim. Da minha janela eu havia notado muitos idosos atentos a uma garota de cabelos dourados, provavelmente filha de um visitante, que corria sobre o gramado. A criança de aproximadamente seis anos de idade brincava de se esconder atrás de uma grande árvore. De tempos em tempos ela corria em ziguezague pelo espaço verdejante e depois retornava mais uma vez para trás do tronco. A garota resplandecia tamanha alergia e espontaneidade. Os velhos acompanhavam suas brincadeiras balançando a cabeça com um movimento pendular. A menina ria, e seu riso repercutia como notas agradáveis. A cena parecia encantada. A juventude era um ponto no meio de um círculo de envelhecidos. Esse havia sido o mais belo encontro entre a juventude e a velhice que eu já pude presenciar.

Quando fechei a janela, a noite já havia despencado e os hospedes conduzidos do jardim do asilo até seus aposentos.

Perambulei um pouco no quarto. Depois fui até o banheiro, onde me deparei com o pequeno espelho preso por um prego entre os azulejos que forravam a parede. Apoiando-me com as mãos nas bordas do lavabo que fazia um ângulo de 90° com o espelho, fiquei ali olhando minha imagem refletida. Meu rosto parecia carregar incontáveis particularidades. Uma larga ossatura que ressaltava meus traços angulares. A barba, por fazer, que despontava branca e dura como arbustos desfolhados brotando de um solo rachado. Rugas que ornavam minha pele e que se pareciam com as marcas que o tempo estampa nas montanhas. A fronte larga que estava recoberta por uma camada de suor. O nariz grande e curvo que lançava tufos de pelos por seus orifícios. Porém, entre todos os detalhes que minha face podia conter nada me parecia mais singular do que aquilo que existia nos meus olhos. Eram olhos de duas cores. Olhos mágicos. Olhos marrons com bordas azuladas. Olhos que continham a mistura de cores comuns nas íris de muitos velhos. Cores que se abraçam com a idade, que simbolizam dois espaços. Cores que se misturam nos olhos daqueles que começam a se perder entre a terra e o céu.

No pequeno espelho, além das cores pintadas nos meus olhos, vi refletidos dois pontos de luz que pareciam ter viajado o infinito e submergido de meus olhos. Eles iluminavam e intensificavam todas as coisas ao meu redor. De maneira que coisas minúsculas e obscuras tornavam-se maiores e mais evidentes. Eventos simples ganhavam complexidades. Emoções amorfas tornavam-se ricas em contornos.

Depois dessas coisas, eu apaguei as luzes do quarto e entrei debaixo das cobertas e dormi até o momento em que despertei no meio da madrugada para matar a sede. Esse fato, entretanto, me fez perder o sono; e então voltei a me debruçar na janela. A lua estava enorme e iluminava fracamente o jardim. As árvores remexiam suas folhas. E o mesmo vento que passeava entre as árvores, alisava as flores do hibisco e me trazia o cheiro de folhas novas e de gravetos mortos. O vento cantava uma valsa em meus ouvidos. A noite estava linda. No céu as estrelas flertavam com a terra. Escutei uma coruja piar e o som repercutiu por alguns segundos nos arredores. Eu não via a ave noturna; ela devia estar escondida por entre os galhos de uma árvore próxima. Mas imaginei seus olhos graúdos. Suas duas bolas que parecem absorver o mundo ao seu redor. Isso me fez recordar, inclusive, de minha imagem refletida no pequeno espelho do banheiro. Meus olhos contendo o marrom da terra e azul do céu. E os dois pontos de luz submergindo de suas profundezas.

Voltei a olhar o jardim. A luz da lua quebrava a escuridão, permitindo-me enxergar um novo espetáculo. Folhas secas dançavam em corrupios ao som da valsa cantada pelo vento. As folhas também produziam uma música toda particular. Era contagiante aquela euforia. De repente, todas as coisas pareciam dançar sob a luz da lua e a canção dos ventos.

Por fim, os acontecimentos me fizeram ter certeza de algo que eu já suspeitava. Na verdade, quando temos uma boa janela, nada mais pode nos impedir de ver o mundo como um bom lugar.