Adriano Monte Alegre
Eu estalava, sobre folhas brancas, letras que formavam palavras, palavras que viravam frases e tomavam vida.
Já fazia mais de quinze dias que escrevia... Escrevi tanto, que as articulações dos dedos quase travaram. Mas só parei de escrever mesmo na hora em que eu a vi saindo do riacho com seu vestido colado ao corpo e seus lábios molhados. Parei ali quando ela saiu com aquela alma que abraça o mundo; na hora em que seus cabelos ruivos foram tocados pelos raios de Sol.
O brilho de seus olhos era tão intenso e seus dentes da cor de neve; apaziguavam tanto o que sou, que eu mesmo, o autor, terminei achando que o amor tinha uma cara: a dela.
A história tinha chegado ao fim e nada mais deveria ser acrescentado. Foi neste instante que tirei os dedos de cima da máquina, e interrompendo os estalos metálicos, parei de escrever.
Aquela mulher meio encantada havia sido a luz que faltava na história. Era o amor que todos os leitores iriam contemplar no desfecho.
Depois de tudo finalizado, reabri a porta dos fundos da casa e revi com prazer as rosas e os jasmins em um quintal quase esquecido. Sentei-me em um canto no exterior e deixei o resto de sol do fim da tarde me esquentar. Bem ao meu lado, o pé de jasmim balançava e me impregnava de um cheiro agradável. Voltei a pensar no texto. No labor necessário para desenrolar as tramas de um romance, assim como na satisfação de construí-lo. Pensei nas frases que transformaram vidas e nos textos que refizeram o mundo. As palavras têm esse poder. Quando bem concatenadas, elas podem fazer uma folha cair da árvore, molhar a camisa de um operário; fazer uma borboleta voar, um pássaro cantar. Transformar o destino de alguém, dar o sorriso ao mendigo e lágrimas ao rico, deixar o burro apaixonado por um pato.
Fazer pairar uma ave de rapina enquanto um cão dorme próximo a alguém. Colocar um gato para andar por cem metros, nem um centímetro a mais. Elas podem dar uma nova tonalidade à luz do dia. Criar suspenses, e muitas outras coisas mais.
As palavras, quando chegam até as folhas pálidas, elas ganham uma alma: o texto. E quando nossas almas são capazes de tocar delicadamente essas almas presas ao papel, nós nos tornamos pessoas melhores.
Quando deixei o quintal com seus jasmins, a tarde caía rapidamente e a noite lentamente mostrava sua face com milhares de lantejoulas.
Carregando meu cansaço, segui até o quarto. Estiquei-me sobre a cama e fique ali, escutando o vento falar nas frestas espalhadas pelas portas e janelas. Foi com esta música que dormi, para sonhar com viagens, amigos, personagens, cobras e lagartos. Parece que no sonho aparecia também uma máquina de escrever sobre a qual meus dedos sambavam. Talvez, justamente, por causa desta cena, eu tenha despertado com um som metálico zunindo nos ouvidos.
Pela manhã, depois que tomei o café, senti uma vontade incontrolável de viajar para longe, bem longe de casa. O mais longe que pudesse ir com uma mochila nas costas. E foi assim, com uma forte coragem, que ajustei a mochila nas costas e fechei a porta de casa atrás de mim.
Quase questionei minha atitude. Mas eu sabia que depois dos dias enclausurado, bem que merecia fazer uma viagem sem roteiro programado. E foi apenas por causa deste sentimento que pude avançar firmemente sem olhar para trás, nem sequer uma única vez.
Passados quatro dias, já tinha atravessado, a pé, selvas, serras e montanhas; engolido dias e noites; contemplado estrelas e rios.
Agora estava no meio do quase nada, em uma terra onde o solo ardia como fogo, e o chão rachava aqui e acolá. Estava no Sertão, bem no seu coração, no meio da secura, dos mandacarus e juazeiros, em um local de onde vemos ‘brotar’, da terra vermelha, ossadas de vacas e bodes. Algumas vezes vi as caveiras desses animais no alto das cercas de paus tortos.
Nas veredas, as árvores retorcidas em aflição pareciam gritar. Eu tinha a impressão de escutar estalos vindos do nada, e até de enxergar ondas de calor deixando o solo e subindo em espírito ao céu. Talvez já estivesse alucinando.
Nos caminhos monótonos da caatinga, eu seguia arrastando minhas alpercatas. Meu deslocamento levantava o pó rubro que se colava como praga na bainha de minha calça e em meus pulmões. A maldita tosse voltava. A saliva já tinha abandonado a boca. O Sol castigava. Meus lábios partidos já se distanciavam dos dentes, e eu seguia arrastando as alpercatas...
A aflição só diminuiu quando avistei o casebre de barro. A imagem fez meus olhos marearem. Deus existia. Acho que o som das alpercatas puxando a terra seca era o que me mantinha de pé.
Aproximei-me do casebre, e só pude bater duas palmas, por causa da força que o desespero me dava.
Foi uma velha que saiu de dentro do casebre. Um cão preto, de costelas salientes, a acompanhava, esbarrando nos tecidos de sua saia. Desde que a velha tinha pisado no chão rachado, fora da casa, duas galinhas correram para bicarem sobre a terra seca junto aos seus pés. A velha, com a pele cortada por rugas, me olhou firme. Seu silêncio era o sinal de que precisei para, sem delonga, pedir um pouco de água.
Ele me fez um sinal com a mão e eu a segui por fora até os fundos da casa. Foi lá que ela me mostrou a direção do meu alívio. Na boca do poço, uma estrutura de madeira trazia uma corda fixada a uma lata.
Tentei sorri, mas minha boca mal se abria. Então lancei a lata, que logo tocou no fundo do poço. Escutei a água entrando na lata... Que maravilha! Logo puxei a corda, que rangeu na roldana. E quando a lata cheia chegou ao alto, abracei-a com força e molhei meus lábios e a garganta.
Nesta hora, escutei um grito vindo de dentro do casebre de barro. O que podia ser aquilo? Perguntei-me. O grito parecia de mulher. Achei estranho o fato de a senhora nem correr para ver o que se passava. Olhei para a velha querendo questioná-la sobre o grito, mas seus olhos cinza pareciam já saber o que acontecia.
Foi só depois de alguns minutos; que nós saímos dos fundos da casa e retornamos por fora até a entrada principal.
Na frente da casa, agradeci pela água. Mas antes mesmo de seguir meu caminho, vi outra senhora mostrando a cara na porta do casebre de barro. Ela tinha vindo do seu interior. Tinha estatura baixa, de cor negra e um corpo quase robusto. Fiquei sabendo que era uma parteira. Ela usava um turbante branco, um lenço no pescoço e abraçava um emaranhado de pano. A velha do meu lado me contou que sua filha acabara de dar à luz. Na verdade, o emaranhado de pano nos braços da parteira cobria um recém-nascido. Eu e a velha nos entreolhamos novamente, mas quando já ia felicitá-la... Exatamente neste momento, a parteira anunciou a terrível notícia: a mãe da criança havia morrido no final do parto. Isso também queria dizer: a filha da velha havia falecido.
Acho que nesta hora, escutei o crocitar de um corvo. A caatinga ficou mais quente, mas senti mesmo assim um frio correr na minha espinha. Então a velha colocou as mãos na boca e chorou algumas lágrimas, antes de me pedir um favor. E é claro que concordei com o pedido. Fiz-lhe apenas uma pergunta. E a resposta que obtive foi apenas a de um dedo apontando para o cajueiro. Era no tronco da árvore que se encontravam, escoradas, a enxada e a pá. Levei uma tarde quase que inteira para abrir uma boa vala; o ferro da enxada entrava com dificuldade no chão duro. Quando terminei fui até o casebre e retornei com a defunta nos braços. Coloquei-a respeitosamente dentro da cova vermelha e, pouco a pouco, fui lançando a terra por cima. Éramos cinco em torno da cova: a velha que chorava baixo à minha frente, o cão preto de costelas salientes, a parteira que estava do meu lado, o recém-nascido enrolado nos seus braços, e eu cobrindo com terra o corpo da morta. Súbito, um vento quente balançou as folhas do cajueiro e uma última pá de terra foi lançada sobre a cova.
Depois desse acontecimento, a noite foi triste. Havia sido uma história inesquecível, e dessa vez não havia sido eu quem a escrevera.